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Feliz de vez!

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Negro.





Não basta vê-los escuros, como eles são aos olhos claros. É preciso torná-los disformes: máscaras. Seres humanos sim, mas desde que entre o grotesco e o horrendo. Se "o homem" em geral até pode ser "descendente do macaco", é o negro quem deve ser a prova disso, e a aparência entre um e outro precisa ser sempre reinventada, reevocada. Sujeitos da noite, que sejam a imagem dos símbolos das trevas, da escuridão sem a lua "branca e diáfana" dos tempos dos poetas e dos escravos, que a banhe de luz. Trazidos para serem servos, que o próprio corpo se antecipe em ser grosseiramente a evidência e, portanto, a justificativa da servidão: pouco inteligente, mas sem dúvida alguma forte e resistente para o trabalho braçal; ruim para os ofícios nobres do branco, inclusive os da guerra, mas afeito a qualquer esforço que ao branco não lhe pareça bem.
Há destinos, pensava-se ainda, que estão escritos na pele, na "natureza da raça", e isso deve ser irremovível: a biologia rege a história. Eis o negro: um corpo ágil e até mesmo belo à distância, como tudo o que, sendo negro, atrai de longe e horroriza ou provoca temor quando de perto: a pantera, o gato preto, o urubu ( de longe parecido também com a gaivota, que pode ser branca e sugere o mar, o limpo e o altivo).
Bem a meio caminho entre o ser humano realizado em sua plenitude, na pessoa genérica do corpo alvo do branco, e o reino proximamente infra-humano dos animais vizinhos, que o negro seja a exata pessoa do animal desumanizado. Tudo o que parece justificar uma tal posição cai fácil na lógica da desqualificação do ser negro.
Pois esses corpos não são apenas feios onde o do branco é belo. Não são apenas horrendos em suas formas mais extremas, isto é, mais propriamente "negras" aos olhos do branco, onde o branco é para ser modelo da norma do bem. Eles precisam ser em tudo o desvalor da própria imagem do ser humano, porque ao olho que olha e julga como narciso, um mal do corpo puxa o outro. Se são feios, são também ameaçadores, disformes e sujos. Fedem por conta própria, ali onde um corpo de branco apenas cheiraria ao esforço do trabalho. São corpos dados à ruindade: "coisa ruim". Malcheirosos como sina da espécie: "todo negro fede", assim como "nêgo que não caga na entrada, suja na saída". Claro, afinal qual o odor da escolha dos povos enegrecidos por séculos de servidão?
De resto, basta ver como a vida cotidiana, segundo alguns, completa na cultura aquilo que, acreditam, a natureza começou a fazer antes, para separar, no corpo dos diferentes, o valor da norma do desvio da imperfeição. Se em si mesmo são tão feios - e têm que o ser, pois são negros - se são sujos e fedorentos, recobrem-se disto e completam com o penteado grosseiro em cabelos irremediáveis o perfil desgraçado de um ser que foi afinal criado para não ser mais do que "isto".
Há músicas populares, várias delas de carnaval, em que a figura diminuída do negro é o motivo da troça. Claro, não é preciso imaginá-los sempre seminus ou aos farrapos, e pelo menos os últimos filmes norte-americanos sugerem negros vestidos de "branco", isto é, alçados à sua aparência exterior, sem deixar de serem negros. Não é preciso, ainda que choque muito mais ver nas ruas um branco claro mendigo do que um alguém de "pele escura". Mesmo quando vestidos de gente do trabalho, ao olhar educado para o preconceito sempre é fácil identificar nesses homens e mulheres supostamente "fora do seu galho" um jeito negro de andar, de por o corpo sentado, de vestir e de falar, de sentir e ser. Como se em todas as faces e todos os gestos do corpo da pessoa, para além e aquém da norma culta, houvesse naturalmente um tamanho exagerado do pé, uma forma mais animalmente desajeitada e deseducada da mão, uma ampliação de tal animalidade no volume bestial da boca e do nariz, quanto mais medidos como grossos e escuros frente aos "lábios finos" do homem branco, tanto mais "de negro". E, por isso, negra ou, de preferência, mulata, a mulher "escura" chega a ser bela e desejável a esse olhar quando, pelo menos, tem os lábios e o nariz finos, se possível debaixo de um cabelo "esticado" para não ser "ruim". Essa "carapinha" selvagem como os matos de onde devem ter vindo os seus ancestrais; "ruim", incapaz do trato. Algo maldito por natureza e cujo único destino de salvação é ser "esticado", "alisado", tornado mais semelhante ao do branco, com esforço persistente; semelhança que condena o negro a ver-se escapado da sina do "bicho" pelo caminho que o leva da falta à farsa.
Pois esse trabalho de domar no corpo negro os sinais da "raça" serve, pensam, não apenas para torná-lo mais civilizado, mas para reduzir nisso o negro a alguém que afinal possa ser pensado como menos perigoso e disforme pelo simples fato de ser como é. Por isso mesmo, tudo o que falta ou excede em seu corpo, diante da imagem da norma, deve ser buscado no modelo do branco: "branquear", eis a palavra-chave, tornar mais liso, mais fino, mais claro. E depois domar os gestos. Civilizar-se: ser nunca tanto como o branco, mas já não mais exatamente um negro.
Porque segundo a lógica da norma branca, se isso é o melhor para o negro (assim como se antecipa com suspiros de alívio que o resultado da "mistura" de corpos é um branqueamento da "raça" que nos salvaria de sermos um país de negros, ainda que ameaçados de sermos de mulatos), sabe-se que tudo não passa de um disfarce. Pois se o branco se dá à mostra e realça no tecido do corpo o que ofereça mais evidência dos sinais visíveis de sua condição, o destino do negro é a ameaça de ser "ridículo", ao tentar deixar de ser "grosseiro". Vejamos a diferença na própria cor simbólica da pele. Quando uma mulher branca vai à praia "pegar um bronzeado", o que ela almeja não é nunca aproximar-se do negro, sequer da "cor mulata", limites perversos da escala das cores realizada nos homens. Ela quer dar ao branco o seu tom ideal, assim como com cosméticos ela realça a curva dos olhos e a dos lábios. Pois tudo o que no negro precisa ser o disfarce, no branco deve ser o realce: fazer a excelência de sua condição, estampada na pele, ser mais ela mesma. Basta pensar a idéia de "moreno" quando aplicada a brancos e negros. Nos brancos ela qualifica para melhor o próprio estado do ser, dado que ser muito branco é feio e dá uma visível idéia de fraqueza, de doença e de ausência de valor erótico. Nos negros ela ajuda a disfarçar o próprio nome dado ao ser, algo que visivelmente ofende quando é sequer pronunciado a secas. As estatísticas e pesquisas, quando envolvem a confissão da cor da pele, registram uma infinidade de termos que dissolvem na fala o estigma da "raça": "moreno" ("morena jambo", "morena escura", "morena índia", são nomes comuns então).

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